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  Eco-espiritualidade: que significa ser e sentir-se Terra? - Leonardo Boff

Leonardo Boff
Teólogo da Libertação, escritor, professor e conferencista, doutor em Teologia e Filosofia pela Universidade de Munique (Alemanha), professor de Teologia e Espiritualidade em vários centros de estudo e universidades no Brasil e no exterior. Autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística.


A Terra transformou-se atualmente no grande e obscuro objeto do amor humano. Damo-nos conta de que podemos ser destruídos. Não por algum meteoro rasante, nem por algum cataclismo natural de proporções fantásticas. Mas por causa da irresponsável atividade humana. Duas máquinas de morte foram construídas e podem destruir a biosfera: o perigo nuclear e a sistemática agressão ecológica ao sistema Terra. Em razão deste duplo alarme, despertamos de um ancestral torpor. Somos responsáveis pela vida ou pela morte de nosso planeta vivo. Depende de nós o futuro comum, nosso e de nossa querida casa comum: a Terra. Como meio de salvação da Terra é invocada a ecologia. Não no seu sentido palmar e técnico como gerenciamento dos recursos naturais, mas como uma visão do mundo alternativa, como um novo paradigma de relacionamento respeitoso e sinergético para com a Terra e para com tudo o que ela contém.

Mais e mais entendemos que a ecologia se transformou no contexto de todos os problemas, da educação, do processo industrial, da urbanização, do direito e da reflexão filosófica e religiosa. A partir da ecologia se está elaborando e impondo um novo estado de consciência na humanidade que se caracteriza por mais benevolência, mais compaixão, mais sensibilidade, mais enternecimento, mais solidariedade, mais cooperação, mais responsabilidade entre os seres humanos em face da Terra e da necessidade de sua preservação.

Nessa perspectiva alimentamos uma atitude otimista. A Terra pode e deve ser salva. E será salva. Ela já passou por mais de l5 grandes devastações. E sempre sobreviveu e salvaguardou o princípio da vida. E irá superar também os atuais impasses. Entretanto sob uma condição: que mudemos de rumo e que troquemos de ótica. Desta nova ótica surgirá uma nova ética de responsabilidade partilhada e de sinergia para com a Terra.

Tentemos fundamentar esse nosso otimismo.

1. Somos Terra que pensa, sente e ama

O ser humano, nas várias culturas e fases históricas, revelou essa intuição segura: pertencemos à Terra; somos filhos e filhas da Terra; somos Terra. Daí que homem vem de húmus. Viemos da Terra e voltaremos à Terra. A Terra não está à nossa frente como algo distinto de nós mesmos. Temos a Terra dentro de nós. Somos a própria Terra que na sua evolução chegou ao estágio de sentimento, de compreensão, de vontade, de responsabilidade e de veneração. Numa palavra: somos a Terra no seu momento de auto-realização e de auto-consciência.

Inicialmente não há, pois, distância entre nós e a Terra. Formamos uma mesma realidade complexa, diversa e única.

Foi o que testemunharam os vários astronautas, os primeiros a contemplar a Terra de fora da Terra. Disseram-no enfaticamente: daqui da lua ou a bordo de nossas naves espaciais não notamos diferença entre Terra e humanidade, entre negros e brancos, democratas ou socialistas, ricos e pobres. Humanidade e Terra formam uma única realidade esplêndida, reluzente, frágil e cheia de vigor. Essa percepção não é ilusória. É radicalmente verdadeira.

Dito em termos da moderna cosmologia: somos formados com as mesmas energias, com os mesmos elementos físico-químicos dentro da mesma rede de relações de tudo com tudo que atuam há l5 bilhões de anos, desde que o universo, dentro de uma incomensurável instabilidade (big bang = inflação e explosão), emergiu na forma que hoje conhecemos. Conhecendo um pouco esta história do universo e da Terra estamos conhecendo a nós mesmos e a nossa ancestralidade.

Cinco grandes atos estruturam o teatro universal do qual nós somos co-atores.

O primeiro é o cósmico; irrompeu o universo ainda em processo de expansão; e na medida em que se expande se auto-cria e se diversifica. Nós estávamos lá nas probabilidades contidas nesse processo.

O segundo é o químico; no seio das grandes estrelas vermelhas (os primeiros corpos que se densificaram se formam há pelo menos l0 bilhões de anos) formaram-se todos os elementos pesados que hoje constituem cada um dos seres, como o oxigênio, o carbono, o silício, o nitrogênio etc. Com a explosão destas grandes estrelas (viraram super novas) tais elementos se espalharam por todo o espaço; constituíram as galáxias, as estrelas, a Terra, os planetas e os satélites da atual fase do universo. Aqueles elementos químicos circulam por todo o nosso corpo, sangue e cérebro.

O terceiro ato é o biológico; da matéria que se complexifica e se enrola sobre si mesma, num processo chamado de autopoiese (autocriação e auto-organização), irrompeu, há 3,8 bilhões de anos, a vida em todas as suas formas; atravessou profundas dizimações, mas sempre subsistiu e veio até nós em sua incomensurável diversidade.

O quarto é o humano, subcapítulo da história da vida. O princípio de complexidade e de auto-criação encontra nos seres humanos imensas possibilidades de expansão. A vida humana floresceu, cerca de 10 milhões de anos atrás. Surgiu na África. A partir dai se difundiu por todos os continentes até conquistar os confins mais remotos da Terra. O humano mostrou grande flexibilidade; adaptou-se a todos os ecossistemas, aos mais gélidos dos pólos aos mais tórridos dos trópicos, no solo, no subsolo, no ar e fora de nosso Planeta, nas naves espaciais e na Lua. Submeteu as demais espécies, menos a maioria dos vírus e das bactérias. É o triunfo perigoso da espécie homo sapiens e demens.

Por fim, o quinto ato, é a planetário; a humanidade que estava dispersa está voltando à casa comum, ao planeta Terra. Descobre-se como humanidade, com a mesma origem e o mesmo destino de todos os demais seres e da Terra. Sente-se como a mente consciente da Terra, um sujeito coletivo, para além das culturas singulares e dos estados-nações. Através dos meios de comunicação globais, da interdependência de todos com todos, está inaugurando uma nova fase de sua evolução, a fase planetária. A partir de agora a história será a história da espécie homo, da humanidade unificada e interconectada com tudo e com todos.

Só podemos entender o ser humano-Terra se o conectarmos com todo esse processo universal; nele os elementos materiais e as energias sutis conspiraram para que ele lentamente fosse sendo gestado e, finalmente, pudesse nascer.

2. Que é a dimensão-Terra em nós?

Mas que significa concretamente, além de nossa ancestralidade, a nossa dimensão-Terra? Significa, primeiramente, que somos parte e parcela da Terra. Viemos dela. Somos produto de sua atividade evolucionária. Temos no corpo, no sangue, no coração, na mente e no espírito elementos-Terra. Dessa constatação resulta a consciência de profunda unidade e identificação com a Terra e com sua imensa diversidade. Não podemos cair na ilusão racionalista e objetivista de que nos situamos diante da Terra como diante de um objeto estranho. Num primeiro momento vigora uma relação sem distância, sem vis-a-vis, sem separação. Somos um com ela.

Num segundo momento, podemos pensar a Terra e intervir nela. E então, sim, nos distanciamos dela para podermos vê-la melhor e poder atuar nela mais acertadamente. Esse distanciamento não rompe nosso cordão umbilical com ela. Portanto, esse segundo momento não invalida o primeiro. Ter esquecido nossa união com a Terra foi o equívoco do racionalismo em todas as suas formas de expressão. Ele gerou a ruptura com a Mãe. Deu origem ao antropocentrismo, na ilusão de que, pelo fato de pensarmos a Terra e podermos intervir em seus ciclos, podermos nos colocar sobre ela para dominá-la e para dispor dela a seu bel prazer.

Por sentirmo-nos filhos e filhas da Terra, por sermos a própria Terra pensante e amante, vivemo-la como Mãe. Ela é um princípio generativo. Representa o Feminino que concebe, gesta, e dá a luz. Emerge assim o arquétipo da Terra como Grande Mãe, Pacha Mama e Nana. Da mesma forma que tudo gera e entrega à vida, ela também tudo acolhe e tudo recolhe em seu seio. Ao morrer, voltamos à Mãe Terra. Regressamos ao seu útero generoso e fecundo. O Feng-Shui, a filosofia ecológica chinesa, apresenta um grandioso sentido da morte como união ao Tao que se manifesta nas energias da natureza. Durante a vida podemos nos sintonizar de tal forma com o Tao e com os ritmos da natureza que, na verdade, escapamos da morte; mudamos de estado para voltar a viver no mistério profundo da natureza, donde todos os seres vêm e para onde todos voltam. Conservar a natureza é condição de nossa imortalidade e condição também para que possam nascer novos seres humanos e fazerem seu percurso no tempo.

Sentir que somos Terra nos faz ter os pés no chão. Faz-nos perceber tudo da Terra, seu frio e calor, sua força que ameaça bem como sua beleza que encanta. Sentir a chuva na pele, a brisa que refresca, o tufão que avassala. Sentir a respiração que nos entra, os odores que nos embriagam ou nos enfastiam. Sentir a Terra é sentir seus nichos ecológicos, captar o espírito de cada lugar, inserir-se num determinado lugar. Ser Terra é sentir-se habitante de certa porção de terra. Habitando, nos fazemos de certa maneira prisioneiros de um lugar, de uma geografia, de um tipo de clima, de regime de chuvas e ventos, de uma maneira de morar e de trabalhar e de fazer história. Ser Terra é ser concreto concretíssimo. Configura o nosso limite. Mas também significa nossa base firme, nosso ponto de contemplação do todo, nossa plataforma para poder alçar vôo para além desta paisagem e deste pedaço de Terra, rumo ao Todo infinito.

Por fim, sentir-se Terra é perceber-se dentro de uma complexa comunidade de outros filhos e filhas da Terra. A Terra não produz apenas a nós seres humanos. Produz a miríade de micro-organismos que compõem 90% de toda a rede da vida, os insetos que constituem a biomassa mais importante da biodiversidade. Produz as águas, a capa verde com a infinita diversidade de plantas, flores e frutos. Produz a diversidade incontável de ser vivos, animais, pássaros e peixes, nossos companheiros dentro da unidade sagrada da vida porque em todos estão presentes os 20 aminoácidos que entram na composição da vida. Para todos produz as condições de subsistência, de evolução e de alimentação, no solo, no sub-solo e no ar. Sentir-se Terra é mergulhar na comunidade terrenal, no mundo dos irmãos e das irmãs, todos filhos e filhas da grande e generosa Mãe Terra, nosso lar comum.

Esta experiência de que somos Terra constituíu a experiência matriz da humanidade no paleolítico. Ela produziu uma espiritualidade e uma política.

Primeiro uma espiritualidade: por todas as partes, a começar pela África, especialmente a partir do Sahara há alguns milhares de anos, de 7000-6000 anos antes de nossa era, quando era ainda uma terra verde, rica e fértil passando por toda a bacia do Mediterrâneo, pela Índia e pela China predominavam as divindades femininas, a Grande Mãe Negra e a Mãe-rainha. A espiritualidade era de uma profunda união cósmica e de uma conexão orgânica com todos os elementos como expressões do Todo.

Ao lado desta espiritualidade surgiu, em segundo lugar, uma política: as instituições matriarcais. As mulheres formavam os eixos organizadores da sociedade e da cultura. Surgiram sociedades sacrais, perpassadas de reverência, de enternecimento e de proteção à vida. Até hoje carregamos a memória desta experiência da Terra-Mãe, na forma de arquétipos e de uma insaciável nostalgia por integração, inscrita nos nossos próprios genes. Os arquétipos continuam irradiar em nossa vida porque rememoram um passado histórico real que quer ser resgatado e ganhar ainda vigência na vida atual.

O ser humano precisa refazer essa experiência espiritual de fusão orgânica com a Terra, a fim de recuperar suas raízes e experimentar sua própria identidade radical. Ele precisa ressuscitar também a memória política do feminino para que a dimensão da anima entre na elaboração de políticas com mais equidade entre os sexos e com maior capacidade de integração. Surgirá naturalmente a experiência de Deus como Mãe infinita e cheia de misericórdia. Essa experiência associada àquela do Pai de infinita bondade e justiça nos abrirá a uma experiência mais global e integradora de Deus.

Essa nova ótica poderá produzir uma nova ética, ética centrada no cuidado por tudo o que vive. No novo paradigma emergente, a Terra e os filhos e filhas da Terra fundarão a grande centralidade, talvez o grande sonho do século XXI. Então podemos contar com paz ansiada por todos, fruto da reconciliação do ser humano com suas raízes telúricas, com a Fonte generadora de todo o ser - o Deus-Mãe - morando todos juntos na Casa Comum, a Terra.

Enfim, queremos deixar uma questão em aberto: será que toda a luta pela terra que o Movimento dos Sem Terra, os Zapatistas e outros movimentos pelo mundo afora levam avante não vive dessa mística inconsciente, de que se trata não apenas de uma luta por um meio de produção (que nunca deixa de ser) mas acima de tudo por uma compreensão diferente do ser humano como um ser da Terra, pela Terra, com a Terra? Não há a percepção mais ou menos clara de que sem a Terra o ser humano é menos, não alcança ser plenamente humano e inteiro? Possivelmente esse valor, pois é disso que se trata, constitui a seiva secreta que alimenta todas as iniciativas, quase sempre arriscadas e que mantém viva a determinação, a despeito de todas as ameaças de morte, de ocupar a Terra para nela lançar raízes, morar, criar a sua morada (os gregos chamavam isso de ethos e os latinos de habitat), plantar e conviver com os outros seres da Terra?

A consciência coletiva incorpora mais e mais a idéia e o valor de que o Planeta Terra é a Nossa Casa Comum e a única que temos. Importa, por isso, cuidar dela, torná-la habitável para todos, conservá-la em sua generosidade e preservá-la em sua integridade e esplendor. Dai nasce um ethos mundial compartido por todos, capaz de unir os seres humanos para além de suas diferenças culturais, sentido-se de fato como filhos e filhas da Terra que a amam e respeitam como a sua própria Mãe.

FONTE: www.leonardoboff.com






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